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O primeiro espelho é tudo o que você ama e deseja destruído; o
segundo espelho é tudo o que você teme tornado realidade; o
terceiro espelho é a Morte; o quarto e último espelho é você e
nada além de você mesmo.
Eu
não sei por que aquela mulher estava me dizendo todas essas coisas.
Tinha acabado de ver uma pessoa passar pela entrada da atração sem
que a funcionária lhe desejasse mais que uma boa noite e, quando me
aproximei, sem aviso prévio, ela começou sua mórbida explicação
do que, aparentemente, me aguardava.
Tão
rapidamente quanto, sua fala cessou, junto com a expressão esquisita
e perturbada, no lugar da qual brotou um sorriso tão forçado que
quase acreditei que aquele fosse um brinquedo normal.
Era
mês de outubro, e o shopping estava oferecendo essa atração,
chamada A Casa dos Quatro Espelhos, em função das comemorações do
Dia das Bruxas. Eu confesso que nunca me interessei muito pela data,
mas a curiosidade acabou me vencendo – afinal, todos os meus amigos
tinham ido e adorado a experiência – e, depois de ter jantado
sozinho numa quarta à noite, resolvi ver por mim mesmo.
A
funcionária ainda me encarava, o sorriso parecendo prestes a
desmoronar, e só então percebi que eu já devia ter entrado.
Atravessei o portal de madeira decorado por runas claramente falsas e
adentrei a sala escura.
Não
sou supersticioso. Pelo contrário, me considero cético ao extremo.
Mas, no momento em que fiz aquela travessia, tive a pior sensação
da minha vida. Foi como se algo tivesse soprado dentro de mim e me
congelado. Eu continuei andando, embora parecesse que, ao mesmo
tempo, estava parado à entrada da atração.
Ignorei
a sensação que teria salvado minha vida e continuei a caminhar no
escuro, até topar com um quadrado do piso que lançava uma luz
branca, a qual não iluminava nada além do vazio e dos meus próprios
contornos. Assim que pisei nele, extinguiu-se a claridade de baixo e
surgiu, provavelmente efeito de alguma ilusão de ótica, um espelho
à minha frente.
O
vidro era perfeitamente polido, e se via nele refletido minha face
temerosa. Mesmo sem tocá-lo, ele me pareceu frio.
Após
uma fração de segundo, surgiu um cenário diferente onde antes
jazia meu reflexo. Era uma mesa de jantar relativamente grande, e
nela sentavam-se vários de meus familiares e amigos, que, todos
vestidos de branco, serviam-se de um grande banquete com talheres
reluzentes. Minha mãe sorriu e acenou de dentro do vidro, e eu
retribuí o gesto.
“O
primeiro espelho é tudo o que você ama e deseja destruído”,
lembrei-me das palavras da mulher uma fração de segundo antes de o
massacre se desenrolar.
Tudo
começou quando um de meus amigos pegou sua faca e arremessou na
testa de outro. O talher cravou-se certeiramente no alvo, e o sangue
começou a escorrer, talvez até com mais intensidade do que
ocorreria na vida real.
Logo
outros talheres foram arremessados, gargantas cortadas, garfos
prenderam mãos à mesa, e o sangue manchava tudo à sua volta.
Eu
me sentia, assistindo àquilo tudo, como se meu coração estivesse
sendo rasgado em tiras. Tentava dizer a mim mesmo que não passava de
ilusão, mas era tão real e havia tanto sangue, tanta dor…
-
Parem com isso! - tentei falar com as pessoas dentro do espelho,
ignorando o fato de que provavelmente não existiam de verdade. - Por
favor, não se matem! Eu amo vocês, não me deixem assistir a essa
cena!
Nesse
momento, eu tentei correr, mas não conseguia
mover as pernas. E não foi uma simples paralisia. Parecia que havia
ali uma presença, uma aura bizarra de escuridão que queria que eu
presenciasse aquilo.
Segundos
depois, estavam todos mortos. A sala de jantar, as roupas brancas,
eram agora um rio de sangue cheio de corpos. Eu tentei abrir a boca
para dizer mais algo, mas o choque foi maior.
A
cena esvaiu-se no espelho e lá eu me encontrava novamente, o pavor
estampado em meu rosto parecendo intensificado pelo vidro gélido.
Eu
não sabia como, mas precisava sair dali naquele instante. Virei-me
ao redor buscando um caminho, mas estava aparentemente em meio ao
nada.
Soprou
então um vento por meu corpo que se assemelhava ao toque, e este me
guiava na direção oposta à qual eu tinha entrado. Os pensamentos
de fuga foram esquecidos ou já não mais importavam. Continuei a
caminhar obedientemente – a quê já não sei – por um caminho
que eu sabia que não deveria estar seguindo.
Outro
piso acendeu-se, outra vez me posicionei sobre ele e mais um espelho
surgiu.
“O
segundo espelho é tudo o que você teme tornado realidade”,
dissera a funcionária.
Diante
de mim estavam todos os medos que eu vinha cultivando durante a vida
e ainda mantinha. Bichos asquerosos cobriam o chão da cena, sobre o
qual caminhavam inúmeros homens de terno bradando espadas medievais
que usavam para subjugar homens vestidos como camponeses. E,
estendendo-se acima disso
e de todos os outros temores, sentava-se num trono o homem a quem eu
mais odiava, que mais me tinha feito mal, e ele parecia triunfante.
Senti
a sala apertando-se contra mim, e eu cada vez mais era jogado para
perto do espelho, até que estava face a face com ele.
O
homem, então, seus olhos
dentro dos meus, soltou
uma gargalhada longa e estrondosa.
Aquilo
me assustou de tal forma que fechei os olhos e levei as mãos aos
ouvidos, recusando-me a continuar a presenciar a cena. Mas, tão logo
me isolei, senti minhas pálpebras sendo abertas como que por dedos
finíssimos, e os mesmos abaixaram meus braços. Um arrepio de horror
percorreu-me o corpo.
A
cena estendeu-se por mais algum doloroso tempo, até que só havia
novamente meu reflexo no vidro, agora praticamente um fantasma, e
assim mesmo um fantasma assustado.
Eu
não conseguia mais raciocinar àquela altura. Não sabia se aquilo
era real, alguma obra bizarra da tecnologia ou algo sobrenatural e
macabro. Não conseguia definir o tamanho do estrago que aquelas
cenas haviam feito no meu psicológico. E, acima de tudo, não me
lembrava do porquê de eu, momentos antes, ter considerado uma boa
ideia entrar naquele lugar horrível.
“O
terceiro espelho é a Morte”.
Nenhuma
cena brotou do vidro deste espelho. Do contrário, dele saiu o nada,
o vazio. Logo eu não conseguia me ver nem a nada. Meus
pés não tocavam mais o chão, se é que eu ainda tinha pés, e não
havia noção clara de direção em meus pensamentos.
Aliás,
eu não conseguia articular pensamentos. Minha mente estrava travada,
mas ao mesmo tempo difusa, como quando estamos em sono profundo e nos
deparamos com cenas do subconsciente que nunca realmente seremos
capazes de processar.
Esse
grande Nada fazia crescer em mim a angústia, o desespero, e eu nem
entendia como aqueles sentimentos conseguiam aparecer, já que não
havia mais,
ali fora ou dentro de mim,
coisa alguma, fosse o que
eu fosse agora.
Uma
consciência estirada no infinito.
Uma
partícula viajando à velocidade da luz.
Parte
das raízes de uma planta.
Uma
alma no Paraíso.
Eu
estava desesperado.
O
vácuo, finalmente, começou a se contrair e logo meu eu novamente
corpóreo encarava o espelho de vidro aparentemente gelado.
Sem
me apavorar, sem questionar, tendo todas as minhas barreiras mentais
em pedaços, simplesmente me virei e continuei caminhando, em direção
à etapa final.
Pisei
no último quadrado iluminado, que se apagou revelando mais um
retângulo de vidro.
Refletido
nele, estava um monstro.
Lá
estava eu.
Eu
era o monstro.
Eu
era um monstro.
“O
quarto e último espelho é você e nada além de você mesmo”,
dissera a moça, e de fato, eu estava encarando a mim mesmo no
reflexo.
A
parte ruim de mim mesmo.
Eu
tinha a pele num tom de vinho bizarro, veias saltadas por todos os
lados. Meu rosto era coberto
por escamas em algumas
partes e, da minha testa, brotavam dois longos chifres aparentemente
muito sólidos.
O
reflexo sorriu maliciosamente.
Eu
tentei gritar, mas já não era capaz de mais nada.
Ele
estendeu suas mãos envelhecidas, os dedos abrigando longas unhas
pretas, em direção a mim, e grande foi a minha surpresa quando elas
atravessaram o vidro do espelho, chegando ao meu lado do véu da
realidade.
Nesse
ponto, recobrei parte da minha humanidade e tentei correr, mas estava
imobilizado por duas grandes mãos, decrépitas como as de meu
reflexo, que brotavam do chão onde eu pisava.
As
mãos do meu eu monstruoso de aproximavam cada vez mais, e, enquanto
o sorriso em seus lábios se alargava, senti-as tocar minha pele.
Ele
apertou meu pescoço com seus dedos finos e maus, e o ar tornou-se
mais e mais distante de mim.
Eu
estava morrendo pelas minhas próprias mãos.
Enquanto
a vida ia embora de meu corpo, eu observava os grandes olhos
castanhos do monstro no
espelho, exatamente iguais
ao meus, sem uma diferença visível sequer.
Como adoro contos mais "macabros", adorei esse. haha
ResponderExcluirContinue escrevendo, Caio; seu conto ficou ótimo.
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Oie! Eu fiz uma semana especial também no meu blog! Foi muito legal, e estou vendo que a sua também está bem interessante! =D
ResponderExcluirBjs, se puder comentar nessa resenha ajudaria muito: http://resenhasteen.blogspot.com.br/2015/11/lobo-mau.html