Slide

domingo, 1 de novembro de 2015

A Casa dos Quatro


- O primeiro espelho é tudo o que você ama e deseja destruído; o segundo espelho é tudo o que você teme tornado realidade; o terceiro espelho é a Morte; o quarto e último espelho é você e nada além de você mesmo.
Eu não sei por que aquela mulher estava me dizendo todas essas coisas. Tinha acabado de ver uma pessoa passar pela entrada da atração sem que a funcionária lhe desejasse mais que uma boa noite e, quando me aproximei, sem aviso prévio, ela começou sua mórbida explicação do que, aparentemente, me aguardava.

Tão rapidamente quanto, sua fala cessou, junto com a expressão esquisita e perturbada, no lugar da qual brotou um sorriso tão forçado que quase acreditei que aquele fosse um brinquedo normal.
Era mês de outubro, e o shopping estava oferecendo essa atração, chamada A Casa dos Quatro Espelhos, em função das comemorações do Dia das Bruxas. Eu confesso que nunca me interessei muito pela data, mas a curiosidade acabou me vencendo – afinal, todos os meus amigos tinham ido e adorado a experiência – e, depois de ter jantado sozinho numa quarta à noite, resolvi ver por mim mesmo.
A funcionária ainda me encarava, o sorriso parecendo prestes a desmoronar, e só então percebi que eu já devia ter entrado. Atravessei o portal de madeira decorado por runas claramente falsas e adentrei a sala escura.
Não sou supersticioso. Pelo contrário, me considero cético ao extremo. Mas, no momento em que fiz aquela travessia, tive a pior sensação da minha vida. Foi como se algo tivesse soprado dentro de mim e me congelado. Eu continuei andando, embora parecesse que, ao mesmo tempo, estava parado à entrada da atração.
Ignorei a sensação que teria salvado minha vida e continuei a caminhar no escuro, até topar com um quadrado do piso que lançava uma luz branca, a qual não iluminava nada além do vazio e dos meus próprios contornos. Assim que pisei nele, extinguiu-se a claridade de baixo e surgiu, provavelmente efeito de alguma ilusão de ótica, um espelho à minha frente.
O vidro era perfeitamente polido, e se via nele refletido minha face temerosa. Mesmo sem tocá-lo, ele me pareceu frio.
Após uma fração de segundo, surgiu um cenário diferente onde antes jazia meu reflexo. Era uma mesa de jantar relativamente grande, e nela sentavam-se vários de meus familiares e amigos, que, todos vestidos de branco, serviam-se de um grande banquete com talheres reluzentes. Minha mãe sorriu e acenou de dentro do vidro, e eu retribuí o gesto.
“O primeiro espelho é tudo o que você ama e deseja destruído”, lembrei-me das palavras da mulher uma fração de segundo antes de o massacre se desenrolar.
Tudo começou quando um de meus amigos pegou sua faca e arremessou na testa de outro. O talher cravou-se certeiramente no alvo, e o sangue começou a escorrer, talvez até com mais intensidade do que ocorreria na vida real.
Logo outros talheres foram arremessados, gargantas cortadas, garfos prenderam mãos à mesa, e o sangue manchava tudo à sua volta.
Eu me sentia, assistindo àquilo tudo, como se meu coração estivesse sendo rasgado em tiras. Tentava dizer a mim mesmo que não passava de ilusão, mas era tão real e havia tanto sangue, tanta dor…
- Parem com isso! - tentei falar com as pessoas dentro do espelho, ignorando o fato de que provavelmente não existiam de verdade. - Por favor, não se matem! Eu amo vocês, não me deixem assistir a essa cena!
Nesse momento, eu tentei correr, mas não conseguia mover as pernas. E não foi uma simples paralisia. Parecia que havia ali uma presença, uma aura bizarra de escuridão que queria que eu presenciasse aquilo.
Segundos depois, estavam todos mortos. A sala de jantar, as roupas brancas, eram agora um rio de sangue cheio de corpos. Eu tentei abrir a boca para dizer mais algo, mas o choque foi maior.
A cena esvaiu-se no espelho e lá eu me encontrava novamente, o pavor estampado em meu rosto parecendo intensificado pelo vidro gélido.
Eu não sabia como, mas precisava sair dali naquele instante. Virei-me ao redor buscando um caminho, mas estava aparentemente em meio ao nada.
Soprou então um vento por meu corpo que se assemelhava ao toque, e este me guiava na direção oposta à qual eu tinha entrado. Os pensamentos de fuga foram esquecidos ou já não mais importavam. Continuei a caminhar obedientemente – a quê já não sei – por um caminho que eu sabia que não deveria estar seguindo.
Outro piso acendeu-se, outra vez me posicionei sobre ele e mais um espelho surgiu.
“O segundo espelho é tudo o que você teme tornado realidade”, dissera a funcionária.
Diante de mim estavam todos os medos que eu vinha cultivando durante a vida e ainda mantinha. Bichos asquerosos cobriam o chão da cena, sobre o qual caminhavam inúmeros homens de terno bradando espadas medievais que usavam para subjugar homens vestidos como camponeses. E, estendendo-se acima disso e de todos os outros temores, sentava-se num trono o homem a quem eu mais odiava, que mais me tinha feito mal, e ele parecia triunfante.
Senti a sala apertando-se contra mim, e eu cada vez mais era jogado para perto do espelho, até que estava face a face com ele.
O homem, então, seus olhos dentro dos meus, soltou uma gargalhada longa e estrondosa.
Aquilo me assustou de tal forma que fechei os olhos e levei as mãos aos ouvidos, recusando-me a continuar a presenciar a cena. Mas, tão logo me isolei, senti minhas pálpebras sendo abertas como que por dedos finíssimos, e os mesmos abaixaram meus braços. Um arrepio de horror percorreu-me o corpo.
A cena estendeu-se por mais algum doloroso tempo, até que só havia novamente meu reflexo no vidro, agora praticamente um fantasma, e assim mesmo um fantasma assustado.
Eu não conseguia mais raciocinar àquela altura. Não sabia se aquilo era real, alguma obra bizarra da tecnologia ou algo sobrenatural e macabro. Não conseguia definir o tamanho do estrago que aquelas cenas haviam feito no meu psicológico. E, acima de tudo, não me lembrava do porquê de eu, momentos antes, ter considerado uma boa ideia entrar naquele lugar horrível.
“O terceiro espelho é a Morte”.
Nenhuma cena brotou do vidro deste espelho. Do contrário, dele saiu o nada, o vazio. Logo eu não conseguia me ver nem a nada. Meus pés não tocavam mais o chão, se é que eu ainda tinha pés, e não havia noção clara de direção em meus pensamentos.
Aliás, eu não conseguia articular pensamentos. Minha mente estrava travada, mas ao mesmo tempo difusa, como quando estamos em sono profundo e nos deparamos com cenas do subconsciente que nunca realmente seremos capazes de processar.
Esse grande Nada fazia crescer em mim a angústia, o desespero, e eu nem entendia como aqueles sentimentos conseguiam aparecer, já que não havia mais, ali fora ou dentro de mim, coisa alguma, fosse o que eu fosse agora.
Uma consciência estirada no infinito.
Uma partícula viajando à velocidade da luz.
Parte das raízes de uma planta.
Uma alma no Paraíso.
Eu estava desesperado.
O vácuo, finalmente, começou a se contrair e logo meu eu novamente corpóreo encarava o espelho de vidro aparentemente gelado.
Sem me apavorar, sem questionar, tendo todas as minhas barreiras mentais em pedaços, simplesmente me virei e continuei caminhando, em direção à etapa final.
Pisei no último quadrado iluminado, que se apagou revelando mais um retângulo de vidro.
Refletido nele, estava um monstro.
Lá estava eu.
Eu era o monstro.
Eu era um monstro.
“O quarto e último espelho é você e nada além de você mesmo”, dissera a moça, e de fato, eu estava encarando a mim mesmo no reflexo.
A parte ruim de mim mesmo.
Eu tinha a pele num tom de vinho bizarro, veias saltadas por todos os lados. Meu rosto era coberto por escamas em algumas partes e, da minha testa, brotavam dois longos chifres aparentemente muito sólidos.
O reflexo sorriu maliciosamente.
Eu tentei gritar, mas já não era capaz de mais nada.
Ele estendeu suas mãos envelhecidas, os dedos abrigando longas unhas pretas, em direção a mim, e grande foi a minha surpresa quando elas atravessaram o vidro do espelho, chegando ao meu lado do véu da realidade.
Nesse ponto, recobrei parte da minha humanidade e tentei correr, mas estava imobilizado por duas grandes mãos, decrépitas como as de meu reflexo, que brotavam do chão onde eu pisava.
As mãos do meu eu monstruoso de aproximavam cada vez mais, e, enquanto o sorriso em seus lábios se alargava, senti-as tocar minha pele.
Ele apertou meu pescoço com seus dedos finos e maus, e o ar tornou-se mais e mais distante de mim.
Eu estava morrendo pelas minhas próprias mãos.

Enquanto a vida ia embora de meu corpo, eu observava os grandes olhos castanhos do monstro no espelho, exatamente iguais ao meus, sem uma diferença visível sequer.

2 comentários:

  1. Como adoro contos mais "macabros", adorei esse. haha
    Continue escrevendo, Caio; seu conto ficou ótimo.

    Desbrava(dores) de livros - Participe do top comentarista de novembro. Você pode ganhar um livro incrível!

    ResponderExcluir
  2. Oie! Eu fiz uma semana especial também no meu blog! Foi muito legal, e estou vendo que a sua também está bem interessante! =D
    Bjs, se puder comentar nessa resenha ajudaria muito: http://resenhasteen.blogspot.com.br/2015/11/lobo-mau.html

    ResponderExcluir

Leia e Comente, sua opinião é muito importante para mim. Caso encontrem algum problema avisem.

Cliquem em "Notifique-me" para saber quando for respondido.

* Os comentários que possuírem link de algum blog terão a visita retribuída